Marcos Prado descobriu Estamira, em 2000, quando fazia fotos do aterro sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias no Rio de Janeiro. Este aterro recebia diariamente mais de 8 mil toneladas de lixo da cidade do Rio de Janeiro e era fonte sub humana de sobrevivência de muitas pessoas. O documentário acompanhou por três anos, o cotidiano da vida da personagem que leva seu nome como título. Estamira Gomes de Souza uma mulher de 63 anos, no editar do docuemntário, tinha moradia em Campo Grande, subúrbio do Rio, trabalhava e vivia neste aterro sanitário aonde chegava a passar 15 dias diretos.
Estamira descreve lembranças de uma infância sofrida. A mãe vítima desta violência foi internada em um Hospital Psiquiátrico sob diagnostico de depressão, aonde maltratada chegou a receber tratamento de choque. Destino usual para todos os que de algum modo “incomodavam” socialmente; tanto por comportamentos desconhecidos, como por atitudes externalizantes, que extravasavam as regras, o domínio.
Estamira relata ter sofrido abuso sexual aos nove, e aos doze anos seu avô a levou para trabalhar em um bordel, saindo apenas aos 17 anos quando casou e teve o primeiro filho. O marido traía, era violento e batia, e quando ela reagiu foi expulsa de casa; aqui é possível perceber a repetição de sua história, pai e marido violentos. A falta de conhecimento e amparo aos direitos civis permitiu que Estamira perambulasse pelas vielas da sociedade. Mais fácil, apontá-la como fora dos padrões que ditam as regras de convivência, do que compreender sua ânsia de viver sem o jugo de uma prisão domiciliar, somando-se aos transtornos psiquiátricos já instalados que lhe amputou este viver social normalmente aceito.
O relacionamento com o filho durante o documentário pareceu conturbado, por acreditar que o comportamento alterado da mãe, estaria relacionado com possessão demoníaca. O filho ao associar o comportamento alterado com possessão demoníaca, vai de encontro com conceitos predominantes na tese da loucura vigente em épocas passadas.
De outra relação teve mais duas filhas, Carolina e Maria Rita. A filha caçula foi afastada da mãe,vindo mais tarde reestabelecer o contato entre Estamira e esta filha, que esta têm demonstrado muito carinho pela mãe. Maria Rita, em seus 21 anos, acompanha e visita constantemente a mãe, defende que ela permaneça trabalhando no lixão, pois ali é feliz, e prefere que ela viva dois anos livre do que cinco anos em alguma instituição (sem liberdade e possivelmente dopada). Indo assim mais próximo ao encontro do conceito de saúde integral, que visa o ser humano em sua totalidade; desvinculando na medida do possível saúde de doença, é possível que no seu contexto social, Estamira possa viver saudavelmente a sua “loucura”. Como a antitese da reforma psiquiátrica, que muda o olhar sobre a loucura, deixando de lado a possessão demoníaca, e conceituando a loucura como doença que precisa ser curada ou dominada. De tal forma que Estamira recebe acompanhamento especializado e medicação que lhe permite transitar socialmente, fato que em outras épocas seria motivo de contenção, como ocorreu com sua mãe.
Conforme seguem as cenas do documentário, retrata o cotidiano da vida no aterro, a disputa dos restos de comida pelos homens e animais, a insalubridade e precariedade deste ambiente, em contraponto é possível vislumbrar a criatividade e respeito que ela conquistou. É requisitada, e sente-se protetora dos seus colegas e animais. Esta mulher sofrida e batalhadora se destaca no aterro sanitário pela sua postura de autonomia e determinação, é vista, tem o seu valor, sente-se e até verbaliza este poder. Os restos que a sociedade descuidada rejeita, refuga, precisam de um local para ser despejado; ali, Estamira, rejeitada e ignorada pela civilidade, encontra de modo autônomo seu jeito de viver, no aterro é detentora de um poder subjetivo e intrínseco, demonstra ser feliz. Não foge do trabalho pesado, faz ponderações sobre a necessidade de trabalhar, com gosto. Critica a sociedade desleixada, que joga fora sem economizar, e alerta que os restos vêm do descuido. Estamira, esta-mira, está longe da mira, do olhar da sociedade.
Comumente, Estamira seria vista apenas como uma “feiticeira”, que grita, fala coisas sem sentido, tem comportamentos bizarros, foge das regras, age como “louca”. De aparência descuidada, com neologismos (cria palavras que não existem, como trocadilo), idéias desconexas, e delírio de perseguição (afirma que o FBI a estava perseguindo), idéias místicas (vai revelar quem é Deus, “Sou melhor que Jesus”) e de grandeza (ninguém pode viver sem Estamira), e descontrole de algumas coordenações motoras. Tem consciência de sua perturbação “Sou perturbada lúcida, sei distinguir a perturbação”, “minha depressão não tem cura”. Mescla histórias bíblicas, com mitologia; cria definições para o que desconhece, faz uso do saber ler, o que a eleva perante seus colegas de trabalho. Ela emite sons, como quem falasse em outras línguas, fita os olhos sugerindo estar vendo e ouvindo coisas. Apresenta quadro psicótico crônico alucinante, onde a idéia de influência e discurso misto delirante necessita de tratamento contínuo.
Recebeu acompanhamento especializado, inicialmente no Hospital psiquiátrico, e mais tarde no Centro de Assistência Psico Social/2002. Quanto aos atendimentos, reclama dos médicos do CAPS dizendo que os doutores são copiadores, pois prescrevem os mesmos remédios seguidamente, e os efeitos colaterais são desagradáveis; "que os remédios são quadrilhas para cerrar os olhos, dopantes".
Em meio aos seus devaneios é possível perceber muita verdade nas falas de Estamira. Quando diz que é necessário conservar as coisas para proteger; quem economiza tem; as pessoas não aprendem na escola, copiam, aprende-se com a experiência; o trabalho é diferente que sacrifício; o homem não pode ser incivilizado; “não existe mais inocente, existe esperto ao contrário”; faz critica ao racismo, a falsidade, moralidade e humilhação. Firma-se em sua auto-estima, e reconhece-se “eu sou assim, não vou mudar o meu ser”.
Devaneios de loucura, que os normais sequer ousam pensar, pois enredar-se-iam em suas normais loucuras. “Estamira, visível e invisível”, diz nesta fala muito mais do que do que as palavras limitam-se a significar; invisível para uma sociedade plástica, que finge não enxergar a miséria e injustiça que ronda, e visível para ela própria, aceitando-se em sua plenitude.
Em nossa sociedade de normais, soltos nos bancos escolares e presos a acirrada competição do mercado de trabalho; dizemo-nos normais. Reprimimos nossos desejos e sentimentos, submetemo-nos aos preceitos de outros, deixamos de viver, acumulamos bens para em seguida descartá-los nos lixões... e pensamos que somos normais. É possível que Estamira em sua loucura, viva mais saudável do que muitos de nós, pseudo-normais.
"Quão tênue é a linha que separa o normal da loucura, já ponderavam antigos pensadores. Se há esta linha eu não sei, mas por certo da loucura já provei" (M.M.O. - abril/2010 - Pseudonimo: Antonela Vancellote)
(Resenha elaborada por Mariane M.O.- 07/06/2010 - respeite a autoria)
ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: Riofilme/Zazen Produções Audiovisuais. Brasil, 2006. 1 DVD (115min)
É possível acompanhar:
Estamira
Atualização em novembro/2010 : Com alegria tenho percebido o grande acesso a este post nas últimas semanas, ficaria muito contente em saber tua opinião sobre o que leu aqui. Esta é uma resenha que fiz após assistir o documentário, e portanto bastante subjetiva. Não carrega uma verdade absoluta, por isto teria o maior prazer numa troca de pareceres. Todos serão bem vindos!