"Há um momento em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos antigos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia - e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (PESSOA, Fernando)

"Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer do modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu." (PESSOA, Fernando)

Respingos de tinta

O que sou

Vivo o presente somente quando, no futuro olho para o passado com saudades. Não quero mais isto para mim. Presa a um passado que não aconteceu, norteada por um futuro ilusório, esqueço do presente. Quero ter lembranças do passado que motive a viver intensamente o presente, num futuro constante e insano! Sim, apenas isto que desejo.

Interpretando palavras que preenchem um vazio incabível. Timbrando letras que moralmente são incompreensíveis. Por que a clareza das escritas foge da minha produção, por que teimo em me esconder pelas entrelinhas de uma construção? São perguntas sem respostas, vazio sem preenchimento, mas jamais será vida sem pulsar. Faz parte da minha edificação, do meu aqui estar.

Sou assim, desse meu jeito único, fragmentada num mosaico vivo, com partes a serem lixadas; sou argila sovada pronta para a queima; sou ave treinando seu vôo solo; sou matéria, abstrata; sou pulsar de emoção e pura paixão; sou fraca, sou forte. Sou vida que corre da morte. Sou tinta que mescla sem técnica e sem norma expressa e, liberta externa na tela a vida não vista, apenas vivida. Sou passo, sou dança, sou saltos e reverências, do clássico ao contemporâneo, não importa a bagunça que faço. Sinto o cheiro das palavras, vejo o som das cores, escrevo a dor do toque na ausência ou na presença. Sou água sou fogo, sou terra sou ar, vento e calmaria, matéria inexata, sou meu pulsar. Sou o que sou agora e nada, em outro lugar

Corre pelas veias a queima profana de um desejo de vida. Que acelera as batidas cardíacas em arritmia desconhecida. O sistema arcaico e reptiliano busca em seus registros passados um rastro de história não descrito e se perdem pelas conexões caudais indolentes. Que esvanece entre o consciente racional dos meros vegetativos mortais.