"Há um momento em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos antigos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia - e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (PESSOA, Fernando)

"Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer do modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu." (PESSOA, Fernando)

29 de mai. de 2024

Nós que aqui estamos por vós esperamos - reflexão

 NÓS QUE AQUI ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS: reflexão

Mariane Manske Oechsler *
O presente documentário produzido por Marcelo Masogão retrata fatos ocorridos no século 20. Com sobreposição de imagens, sons e uma mescla de sentimentos evocados trazem a tona fragmentos da história do homem nos diversos contextos e momentos. De forma subjetiva, permite que cada expectador elabore sua própria construção de pensamentos e reflexões. Marcos históricos conhecidos do meio acadêmico, outros que sequer fazíamos idéia do ocorrido; vidas que marcaram o caminho da humanidade positiva outras negativamente, isto sob uma perspectiva distante da época, despertam o questionamento das mudanças provocadas. Tantas vidas anônimas que teceram a mesma história, porém nas coxias do espetáculo, e que permaneceram anônimas, pelo próprio desejo ou pela opressão, não temos como saber! Fatos e fotos, recortes e retratos, de vidas e de mortes.
Apreciação critica:
Neste documentário eclodem pequenas histórias de grandes personagens (conhecidos ou não). Fatos representativamente marcantes no desenvolvimento humano, tecnológico, científico e psíquico. O que era impossível, irreal; hoje é corriqueiro. Retrata a liberdade de expressão pela arte; reflexos da revolução industrial; a influência e manipulação dos meios de comunicação; descobertas que proporcionaram um avanço na qualidade de vida... ou não. Dentre várias frases célebres apresentadas, destaco a de McLuhan “Os homens criaram as ferramentas, as ferramentas recriaram os homens.” A abrupta mudança de comportamentos tais como inserção da mulher na indústria, mecanicismo, capitalismo desenfreado, linhas de produção. O que era simples e pacato torna-se complexo e agitado. Uma sutil linha divisória entre normalidade e anormalidade; saúde e loucura permeiam diversos momentos das imagens expostas.
Guerras, conflitos, disputa pelo poder, estão muito bem retratados pelas imagens e expressões dos rostos sofridos de vidas impedidas. A violência e agressividade do ser humano mutilaram muitas vidas. Mesmo que incapaz de tecer um julgamento sobre atitudes e crenças, é impossível não se indignar com o comportamento desumano da raça que se denomina HUMANA.
Grandes inventores, não seriam assim reconhecidos caso suas experiências “loucas” não tivessem sido assertivas; portanto, neste contexto, muitos outros “loucos” estão desconhecidos porque talvez lhes tenha faltado oportunidade. Retrocedendo a história do advento do avião, tivemos muitas tentativas frustradas de vôo, até que houve o sucesso. Portanto, classificar comportamentos, e segregar da sociedade aqueles que ousam quebrar as regras do convencional, é tão injusto como deixar em liberdade aquele que faz mau uso do poder. A tal da dicotomia. Novamente a classificação de sanidade vem à tona, quando nos remetemos a lideres políticos inescrupulosos. Não há de se negar que o meio cultural, físico, histórico são dinâmicos e refletem diretamente no que caracterizamos como saúde, e compreendê-los, portanto, pode ser um caminho a ser trilhado visando a qualidade de vida do ser humano.
Conclusão:
Silenciar o passado é ser tão cúmplice como os que pactuaram com as atrocidades. Mas discernir entre o certo e o errado, sem estar inserido na época e contexto em que eclodiram todos estes acontecimentos, me desautorizam a um julgamento. O que era lei ontem, hoje já não tem valor; o que foi motivo de prisão e opressão, hoje é aceito como modismo e conformismo, mas como distinguir o saudável da loucura? Talvez o cerne da questão, não seja procurar uma separação, uma classificação; pois facilmente cairia em novas injustiças. Creio que olhar para a história, a fim de capturar a essência da vida, compreender a dor da perda, lidar com as escolhas individuais sem preconceitos; capacita-me para ser mais humana. Conceituar normalidade atrelado à saúde limita o ser humano de explorar a sua criatividade e desenvolver novas habilidades. O que aparentemente emana saúde, nos conceitos populares, pode estar mascarando doenças avassaladoras. Saúde abrange muito mais do que um corpo fisicamente perfeito, de isenção de qualquer dificuldade de manifestação ou expressão, ser aptamente produtivo. É possível, portanto, considerar como um desenvolvimento com qualidade no físico, subjetivo e relacional, vislumbrando o ser na sua integralidade.
É possível que o autor não tenha trilhado por estes caminhos na construção deste documentário, mas ele permite a elaboração crítica do modo de vida que estamos tendo e quais as perspectivas que temos daqui para frente!

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