"Há um momento em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos antigos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia - e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (PESSOA, Fernando)

"Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer do modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu." (PESSOA, Fernando)

11 de jan. de 2014

Cartas de Antonela Vancellote II

Por hoje apenas


Lembro de nossas juvenis juras de amor, numa tentativa de mensurar a magnitude deste sentimento, desafiando a criatividade um do outro. Posso dizer-te que nem de perto, naqueles anos dourados, pudemos chegar ao que hoje sentimos um pelo outro. É verdadeiro e puro; vai muito além da paixão, esta sim, por vezes sinto falta. Este amor, construído e constituído abastece e nos move a continuar galgando os obstáculos que doravante nos desafiam. Sinto e sei o quanto me amas, e a recíproca é verdadeira. Acolheste-me no desamparo, permitindo aconchegar-me em teu peito, meu refúgio de tantas lágrimas furtivas. O que tenho, o que sou, fazes tu parte desta composição. E por te amar tanto assim, envolvo-te em um manto de proteção; não admito, não suporto magoar-te. E por ser difícil expressar o que se passa comigo, sem arriscar ferir-te; reprimo e absorvo meu sentimento mesquinho. Sei que também assim não sou justa contigo, mas simplesmente asfixia-me o momento que cogito a possibilidade de derramar-me diante de ti. São resíduos de outrora cuja minha indelicadeza não fora construtiva, mágoas e dores das quais fujo desesperadamente, me calam.



Como dizer-te que me sinto sufocada e fragilizada. Que minha reserva de energia esvai-se nos teus rompantes de descontrole. Que necessito de teu apoio. Que me falta o teu olhar; não apenas olhar desejante, mas olhar de admiração, de cortejo. Desculpe, mas o cortejo há muito não existe. Sou pura emoção, sou simples e frágil; não te peço senão ser amada e desejada pelo que sou, e não pelo que proporciono a ti. Desta forma, atendendo as tuas faltas, não percebes, mas me mantêm sob teu domínio. Podas minha possibilidade de voar, e delimitas o raio de liberdade. Sinto que minha vida, não me pertence, tu a monitoras como a quem não podes perder o domínio. E nesta rédea, sufoco. Mas por amor indecifrável, mascaro todo sentimento. Olho em volta e contemplo a beleza que me cerca. Iludo-me com pensamentos dispersos, que afastam do meu objetivo maior:  falar contigo com firmeza e ternura; expressar a dor que causa em mim, toda vez que me sinto propriedade tua. Não ouso viver longe de ti, mas perto, apenas sobrevivo. Empenho em satisfazer tuas necessidades, teus anseios, e isto tu o sabes muito bem. Abasteço-te, e abastecendo me esvazio. Esvazio de mim, por ti. Não consegues compreender minhas necessidades. Falo-te, mas não me ouves; mostro-te, mas estais cego. Não sentes após a nossa intimidade, as lágrimas que rolam na face, nem a dor que comprime meu peito. Estais satisfeito, relaxado aprazerado. E eu, ao lado lutando por não ter sido vista. Vês em mim  teu complemento, e não a minha integralidade... Se pudesse dizer tudo isto, se ao menos tu pudesse ter conhecimento destas palavras... São elas o escape de minhas angústias, meu deslize.

Abraços de quem não foi lida,
Antonela
1871
Texto elaborado por Mariane - tintadotinteiro. 
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